
A Língua Portuguesa e os incontáveis xingamentos para mulheres
Uma das pautas mais inusitadas de minha carreira jornalística foi uma reportagem sobre gravidez psicológica canina. Vencida minha estranheza inicial ao tema, confesso que o grande desafio era redigir o texto sem repetir os termos “cadela” e “cachorra” a cada parágrafo. O dicionário de sinônimos pouco ajudava, pois sugeria substitutos como “meretriz”, “prostituta” e uma palavrinha de quatro letras imprópria para este espaço.
Tal episódio me fez lembrar de uma velha anedota sobre o machismo do nosso idioma. Na Língua Portuguesa, “aventureiro” designa um homem desbravador e destemido. “Pistoleiro” é assassino de aluguel. Até mesmo o indesejável adjetivo “vagabundo” quer dizer nada além de um cara desocupado. Em contraste, as variantes femininas desses verbetes têm, todas, o mesmo sentido. E não estou falando somente de nomes para profissional do sexo. “Aventureira”, “pistoleira” e “vagabunda” são xingamentos depreciativos, associados a indecência e imoralidade.
Exemplo mais recente veio à tona no mês passado, com uma reclamação da cantora Luísa Sonza. Ela comentou, numa rede social, que o dicionário do Google chamava mulher solteira de prostituta. Depois quem se indignou foi Anitta, ao constatar que, para o oráculo da internet, “patroa” era dona de casa, enquanto “patrão” era “proprietário ou chefe de um estabelecimento comercial privado”.
Em ambos os casos, a ferramenta de busca simplesmente apresentou as acepções listadas no Oxford Dictionary. Aliás, não é culpa dos dicionaristas que as palavras ganhem os significados que ganham. Esses profissionais apenas documentam os usos da língua.
A questão está na evolução do idioma. Sim, porque a maneira como nos expressamos por meio da linguagem vai mudando ao longo das décadas, acompanhando os costumes e as demandas da sociedade. Basta pensar nas gírias de antigamente e que ninguém usa mais, ou nos nossos regionalismos praticamente indecifráveis em outras regiões do país.
Nessa toada, algumas expressões envelhecem mal. À medida que o tempo passa, vamos enxergando seus contornos pejorativos. Então, torna-se adequado aposentá-las de nosso vocabulário.
Por exemplo, xingar um homossexual de “mulherzinha” é, ao mesmo tempo, homofóbico e misógino. A alcunha está ligada a fraqueza, como se um rapaz de gestos delicados fosse menos homem – o que, por consequência, também coloca as mulheres numa posição inferior, submissa à autoridade masculina. Portanto, nada mais natural que abandonar essa palavra. Isso é reconhecer que “mulherzinha” não funciona como insulto, uma vez que ser mulher não é defeito – e tampouco o é ser homem, mas ter um comportamento supostamente feminino.
Aí volto ao substantivo “mulher-solteira” (assim mesmo, com hífen, como grafado no léxico oficial). Uma amiga minha, formada em Letras, contou-me que o termo provavelmente vem de uma época em que as esposas eram propriedade do marido e não tinham direitos civis. Moças de família se casavam. Às solteiras, restava o rótulo de libertina.
Esse preconceito há muito já foi superado. Logo, seria espantoso, de fato, encontrar uma associação entre estado civil feminino e prostituição na primeira página do Google. Ainda que a acepção da palavra exista, esse uso ficou no passado.
A empresa de tecnologia reconheceu o problema e corrigiu os resultados de busca. Agora, a explicação de que “mulher-solteira” é sinônimo de meretriz não vem mais em destaque. Ela está escondida nos dicionários, como mera curiosidade histórica.
Contudo, o machismo estrutural ainda nos permeia. Imagens de seios são bloqueadas nas redes sociais como se fossem pornografia, mesmo quando as fotos retratam uma mãe amamentando seu filho. Inteligências artificiais, subordinadas aos comandos humanos, respondem servilmente com voz feminina. Sem contar os inúmeros termos como “mundana” e “perdida”, sempre empregados para desmoralizar a acusada.
Talvez seja hora de virarmos o jogo: encontrar a mesma quantidade de palavras repreensivas para nos referirmos a estupradores, feminicidas ou pais ausentes que não pagam pensão. Esses, sim, merecem reprimenda.
Por Rafael Tourinho Raymundo
Jornalista, de Taquara
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