
Um ano depois da maior tragédia natural da história do Rio Grande do Sul, que atingiu 471 cidades, matou 183 pessoas e expulsou 740 mil de casa, de sua propriedade na Linha Café Baixa, zona rural de Três Coroas, o agricultor e apicultor Valentim Zapani, de 68 anos, ainda calcula os prejuízos no patrimônio que levou uma vida para construir. “Foi-se embora a casa inteira”, diz, enquanto aponta para onde a água chegou. “Só sobrou a geladeira, a máquina de lavar e umas louças. O resto foi tudo.”
Apenas um punhado de bens de baixo valor material e afetivo, considerando a longa história de Valentim e sua esposa, Diles, 63, casados há 45 anos, que moram há mais de três décadas na localidade, às margens do Rio Paranhana. Eles vieram de São Miguel do Oeste, em Santa Catarina, nos anos 1990, como tantas outras famílias do sul do país que rumaram para a região para tentar a vida nas então emergentes fábricas de calçado. Agora idosos, não tiveram outra opção que não fosse começar praticamente do zero.
“Temos um terreno ainda sem uma casa pronta, um Fusca velho, que ando pra cá e pra lá com minhas abelhas, e o Prisma”, resume.
Símbolo de resiliência, a nova casa de Valentim e Diles começa a ganhar forma, erguida exatamente no limite atingido pela água na antiga residência, na Rua Brasil. O cenário ao redor já não lembra em nada a lama, os entulhos e a destruição do ano passado. Hoje, o verde é a cor predominante. Mas nem tudo é esperança. As contas se acumulam, e a reconstrução pesa no bolso.
“Fizemos o alicerce da altura que foi a enchente”, explica o agricultor. Depois que as águas baixaram e o tempo firmou, o casal comprou a casa e parte do terreno de um vizinho que decidiu não voltar e juntou os pedaços do que sobrou para tentar recomeçar. Eles estimam um prejuízo de até R$ 150 mil, mais ou menos o valor que devem gastar na reconstrução. “Uma casa de R$ 100 mil, por exemplo, hoje tu gasta mais R$ 100 mil só em mão de obra. Tudo é caro.”
Mas não é só a cratera nas finanças aberta pelas fortes chuvas que incomoda Valentim. A forma como as autoridades lidaram com o desassoreamento do Rio Paranhana, como medida de contenção de futuras e prováveis cheias, também trouxe desagrado a ele e outros ribeirinhos no pós enchente. “Vieram com quatro dragas, afundaram o rio, endireitaram tudo. Mas deixaram estreito demais. Antes tinha uma curva, agora ficou reto. O barranco ficou alto, mas é tudo pedra solta. Se dá aquela enchente de novo, não sei como vai ser”, detalha, sempre com um olhar que não esconde o trauma.

Ele calcula que perdeu cerca de 4,5 mil metros quadrados de terreno após a dragagem. “Tiraram do barranco pra dentro e tombaram tudo. Se eu tivesse a cabeça de hoje, não deixava fazerem o que fizeram. Aqui, os políticos não são pro povo. São pra eles. E o povo ficou sem rumo”, desabafa.
O município, que teve 80% do seu território afetado pelas enchentes, está sendo beneficiado pelo programa Desassorear RS, que visa remover sedimentos de rios e arroios para prevenir alagamentos e melhorar a infraestrutura. Segundo a Prefeitura, a expectativa é que o desassoreamento ajude a aumentar a vazão do rio e a reduzir os riscos de transbordamento durante períodos de chuva intensa.
De acordo com o coordenador municipal do programa, Augusto Dreher, entre as principais intervenções já realizadas estão a instalação de gabiões (estruturas de contenção) em pontos críticos como Sander, na entrada do bairro Moreira e na rua Kayser. Também estão em andamento obras de contenção na Vila Dreher e na rua Sapiranga.
Dificuldades para recomeçar
Valentim conta que, na época, enfrentou dificuldades por falta de informações claras e acesso ao auxílio, o que o fez perder prazos para solicitar parte da ajuda. “Recebemos só aqueles cinco mil do governo”, disse, referindo-se ao Auxílio Reconstrução, benefício federal de R$ 5,1 mil destinado a moradores das áreas atingidas pelas enchentes que perderam parte ou todos os seus bens.
“Tinha auxílio aluguel, auxílio de dois mil e pouco [Volta por Cima, do governo estadual, de R$ 2,5 mil por família, pago em parcela única, para famílias desabrigadas ou desalojadas], mas disseram que era só até maio. E na hora da enchente a gente se atacou a se mexer, não tinha onde morar. Não fomos atrás de nada disso, não dava pra perder tempo”, lamenta.
Hoje, eles vivem com um salário mínimo da aposentadoria. “Tu vai fazer rancho, pagar luz, água e alguma coisinha, já se foi o dinheiro. Vai viver como?”, questiona Valentim. “Mas vamos fazendo. Nem que leve dois, três anos, mas vamos. Só que naquele patamar antes da enchente, nunca mais vamos chegar.”
O agricultor interrompe a fala por um instante, olha para a terra remexida, onde cultiva verduras junto da mulher e na companhia de dois filhotes de gato, e conclui, com os olhos marejados: “Imagina… tenho quase 70 anos. O que mais posso fazer a essa altura da vida?”

Migração inversa
Além da reconstrução, o casal também observa com atenção o movimento de retorno de muitos moradores para Santa Catarina, de onde vieram no início dos anos 90. Diles conta que o processo migratório agora é inverso.
“Nós éramos de São Miguel do Oeste. Largamos de tirar leite de vaca e viemos trabalhar nas fábricas aqui. Na época, nossa região não tinha recurso pros ‘filharedos’, e nós já estávamos esperando o quinto filho. Aqui tinha emprego. Hoje é o contrário. Muita gente que veio está voltando. Principalmente por medo de reviver o que passamos”.
Memórias de uma noite interminável
Valentim lembra com detalhes da noite que parecia nunca acabar: a madrugada de 2 de maio de 2024, quando a enchente chegou com força total. “Meu Deus do céu, cara. Era uma hora da madrugada, a água tava aqui na rua. ‘Meu Deus, mas não é verdade’, era o que se passava na minha cabeça.” E a situação piorava a cada minuto, conforme ele lembra. “Às três da madrugada a água chegou lá em cima, e os eucaliptos começaram a cair. A gente via os troncos caindo contra o céu, aquele barulhão, barulhão, barulhão”, relata, com a voz embargada pela lembrança do som aterrador.
Valentim descreve o caos que se seguiu: “Ali tinha a casa do pai do rapaz”, aponta. “Tinha a minha [residência] lá embaixo, o galpão, o galinheiro, o chiqueiro cheio de lenha… E aquele barulhão, aquele barulhão, meu Deus.”
Ele lembra que, enquanto a água subia, a escuridão não dava trégua: “Não clareava o dia nunca, homem. E o que mais se ouvia eram pessoas gritando por socorro.”
Valentim arriscou a vida ao tentar atravessar o local da enchente. “Eu fui lá no poste de luz e ia amarrar uma corda, mas a água estava muito alta. Então tentei alcançar a cerca da propriedade, mas ela acabou sendo levada. Vi que não tinha como continuar. A água estava por toda parte, já estava tudo deitado, os canaviais arrastados pela correnteza. Não dava para salvar ninguém”, lamenta.
Às 9h da manhã do dia 2 de maio de 2024, depois de enfrentar muita dificuldade para se locomover em meio à enchente, Valentim conseguiu encontrar os filhos. Uma das filhas perguntou, aflita, como estava a casa dos pais. Ele respondeu que não restava mais nada, que tudo havia sido levado pela água. O impacto da notícia foi tão forte que ela desmaiou. Ela estava grávida e ainda não sabia, o que tornou o susto ainda maior.
Valentim conta que a sensação naquele início de maio de 2024 era de completo desamparo. “A gente ficou sem chão, sem rumo. Olhava em volta e só via árvore caída. Não tinha mais nada. E aí, o que tu faz?”
Mesmo três meses depois da tragédia, ele e a família ainda não conseguiam descansar. “Quem é que dorme? Ninguém dorme. A cabeça não para, fica pensando em tudo que tinha… e que agora não tem mais.”
E acrescenta, resignado: “a natureza quis assim”.
Reconstrução: uma luta diária
Após a tragédia, a integridade da família tem sido a maior riqueza de Valentim e Diles. “A família toda foi preservada. Tanta gente perdeu seus parentes, seus entes… Na televisão, aquilo tudo era difícil de ver. Aqui mesmo, duas crianças foram arrastadas pela água”, relembra Diles.
“Olha, meu piá me disse uma vez: ‘Pai, precisa tão pouco pra viver. Não se apega a muitas coisas’. A gente guardava uma coisinha aqui e outra ali, mas não se apega a nada disso”, conta Valentim.

Para o casal, hoje, o essencial é estar vivo. “A gente precisa tão pouco para viver. Olha quantas coisas a gente sofreu para adquirir. E agora? Agora, nos apegamos só ao que é necessário para hoje, para amanhã e depois de amanhã, e assim vai indo”, reflete Diles.
A reconstrução é uma luta diária, mas a ideia de viver o dia de hoje com o que se tem é o que os mantém em pé. E, para isso, contam com a ajuda dos filhos.
“Fazer o quê? Viver o dia de hoje, só Deus sabe o amanhã”, diz a agricultora. “Quem me segura é a minha família. Meus filhos. Meus netos. Não esperava por isso, mas hoje me sinto uma pessoa vitoriosa”.
Quem quiser ajudar na reconstrução da família pode fazer uma doação via Pix para a chave 51999128922, em nome de Valentim Zapani.